Quase 300 cursos de arquitetura e urbanismo no país: como tratar a qualidade com tanta quantidade?
Ao continuar o mesmo ritmo de aberturas de novos cursos de arquitetura e urbanismo observado nos últimos dez anos, o número de cursos de graduação no Brasil deve atingir 300 ainda neste ano.
A ABEA em seus quase quarenta anos de existência não tem adotado até hoje nenhuma política de ação restritiva a abertura de novos cursos, mas tampouco os apoia indiscriminadamente. A política da ABEA tem sido de congregar os principais agentes interessados – professores, estudantes, profissionais e a sociedade – em busca de melhor distribuição geográfica e social de cursos e profissionais e de um esforço coletivo constante por patamares o mais elevados possíveis na qualidade do ensino. Uma ação que podia ser resumida em uma frase: a abertura de novos cursos mais que um problema de quantidade é um problema de qualidade, de manutenção e elevação do padrão de qualidade.
No entanto, no período recente o número de cursos se tornou tão expressivo (já são mais de 290 distribuídos desigualmente pelo país) que o atual sistema de avaliação e controle tem se mostrado insuficiente e incompetente para cumprir seu papel.
Se por um lado a sociedade brasileira demanda cada vez mais a participação do arquiteto e urbanista na resolução de seus problemas de espaço habitável, por outro a própria sociedade e os profissionais não encontraram ainda dispositivos que propiciem os benefícios da atuação do arquiteto a totalidade da população. Mesmo que, desde 2008, exista uma lei que assegure “às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social” (Lei 11.888/2008).
Com o crescimento das cidades e o agravamento das condições de moradia, saneamento, transporte, etc., aliados às demandas por espaços melhor qualificados nas áreas de saúde, educação, cultura e lazer, a sociedade tem reconhecido cada vez mais a importância e necessidade da atuação do arquiteto e urbanista, mas não pode ainda alcançar os seus serviços com a universalidade desejada. Assim, ao se falar em saturação do mercado, é preciso distinguir a que mercado se refere: se aquele do arquiteto projetista autônomo que atendia somente as camadas elevadas da população, típico do século XX ou, em contraposição, um novo perfil de profissional pronto a contribuir na solução dos problemas espaciais das aglomerações urbanas nas diferentes escalas e características físicas e sociais. Um arquiteto que mesmo sem deixar de atender o cliente privado atenda cada vez mais as demandas reais e urgentes de toda a sociedade. É nesta forma de atendimento mais amplo que não somente os cursos, mas o ainda nascente Conselho de Arquitetura e Urbanismo deve focar sua ação, sendo necessário observar que o exercício privativo da arquitetura, sua regulamentação e a exigência do diploma de curso superior foram exigências impostas de longa data pela sociedade em relação aos arquitetos, e não o contrário. O exercício privativo a determinada formação é requerido para aquelas áreas em que conhecimentos especializados técnico-científicos são imprescindíveis, e sua falta acentua os riscos quanto a garantia da incolumidade do meio ambiente, dos bens e da vida dos usuários.
Com a insuficiência do processo de avaliação de cursos algumas áreas ou setores profissionais, inclusive no âmbito de algumas entidades de arquitetura e urbanismo, passam a ventilar a necessidade da instituição de um exame pós-formatura e de restrição ao ingresso profissional chamado de exame de ordem, qualificação, habilitação, proficiência ou outro nome que se queira.
Há inclusive os que defendam uma espécie de estágio pós-formatura, além do estágio supervisionado pré-formatura já existente, chamando-o de residência em arquitetura e urbanismo e mal comparado às residências médicas. Estas na verdade constituem uma modalidade de ensino de pós-graduação destinada a médicos, sob a forma de curso de especialização oferecidos por instituições de saúde e sob a orientação de profissionais médicos que devem ser possuidores de elevada qualificação ética e profissional.
A recente iniciativa do Conselho do Conselho Regional de Medicina de São Paulo – CREMESP em tornar obrigatório um exame de conclusão de curso, até então facultativo, e que por falta de dispositivo legal não impede o candidato de obter seu registro profissional, visa oficialmente obter dados estatísticos confiáveis em relação aos cursos médicos. A iniciativa contou com o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, que aplica, aí sim por dispositivo legal, o Exame de Ordem. O pretexto do CREMESP foi o aumento vertiginoso do número de cursos e da baixa qualidade de muito deles, bem como a baixa adesão ao exame facultativo.
Ou seja, como o MEC não está cumprindo adequadamente seu papel de controle da oferta de ensino, eles desejam proceder a uma avaliação própria. O mesmo argumento utilizado por outros profissionais, inclusive da área de arquitetura e urbanismo. Interessante observar que entre estes profissionais, defensores de um controle de acesso ao mercado, a qualidade do ensino caiu acintosamente imediatamente após a sua formatura. Seja ela recente, de alguns meses, ou longínqua, de algumas décadas. Se excluem de um eventual exame, presumindo-se que tiveram um curso e um desempenho de elevado nível, e apontam a necessidade dos que vieram após eles próprios.
No entanto, a própria sociedade profissional tanto de médicos quanto de advogados tem considerado estes exames no mínimo discutíveis em seus objetivos e eficácias, quando não se manifestam contrariamente como é o caso das associações de ensino de Direito e de Educação Médica (ABEDI e ABEM).
O principal argumento contrário à aplicação desse tipo de exame como controle primeiro da qualidade de ensino e em segundo da qualidade dos profissionais é que no primeiro caso retira das IES a responsabilidade pela formação profissional, deixando-as “apenas” com a função de formar “bacharéis”, e no segundo a experiência realizada em outras áreas e outros países tem demonstrado ineficiência em relação ao objetivo, não contribuindo para preservar a sociedade de profissionais desprovidos de competência e ética profissional.
A ABEA – com apoio da CEAU, CONFEA, FNA, etc. – em outros tempos já rejeitou esse tipo “vestibular pós-formatura” por considerar exatamente que esses exames são instrumentos de avaliação pontual, não levando a melhoria do ensino ou da formação profissional, além de retirar das Escolas a responsabilidade que lhes compete, penalizando o aluno (BRASIL, 1994).
Ainda que a ABEA já venha repetidamente se manifestando contra a adoção de exames pós-formatura, bem como sua preocupação crescente com a qualidade do ensino oferecido pelas escolas, mas compreendendo que a atenção e o controle devam ocorrer no âmbito do mundo acadêmico, durante o processo de formação tanto em relação a qualidade do ensino oferecido por cada IES como pela seriedade e competência com que se realizem cada etapa de avaliação dos estudantes, se faz necessário neste momento uma ação mais firme e objetiva fortalecida pelo apoio das demais entidades. Defendemos de maneira intransigível a qualidade de ensino, a sólida formação e o correspondente exercício competente e ético, mas certamente a avaliação pontual ao final do processo não será a maneira mais ética, adequada e eficiente para o controle.
Concluímos que ainda que a análise do crescimento de cursos seja extremamente preocupante, esta consideração não deve alimentar a adoção de soluções simplistas de apelo fácil que induzam na verdade a um discutível controle de acesso ao mercado, defendido por aqueles descompromissados com a necessidade social da atuação do arquiteto e urbanista. Longe de ser solução, a adoção de exames pós-formaturas além de significar a falência do sistema de ensino e seu controle, contribuir para o declínio ainda maior da qualidade de ensino ao isentar as instituições de sua responsabilidade na formação, transferindo a preparação para a habilitação profissional a milionários “cursinhos” que existiriam com esta única finalidade. A seriedade do momento exige atitudes sérias que contribuam não somente a situações conjunturais do mercado, mas principalmente ao atendimento pleno da sociedade frente ao crescimento das cidades e da crônica falta de espaços qualificados para moradia, saúde, educação, cultura, lazer, etc.
Não há alternativa que não o investimento maciço e o controle estrito das condições de abertura e principalmente de oferta do ensino de arquitetura e urbanismo, alcançando inclusive o controle das avaliações no âmbito dos cursos.
Extrato do artigo:MARAGNO, Gogliardo Vieira. “Questões sobre a qualificação e o ensino de arquitetura e urbanismo no Brasil.”
Apresentado no XXXI Encontro Nacional sobre Ensino de Arquitetura e Urbanismo. ABEA: São Paulo, 2012.
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